Acaba de desembarcar no Brasil um ateísmo militante que não se contenta em agitar cenáculos filosóficos, mas vai às ruas e toma o ônibus.
Sob inspiração da Atea, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, alguns ônibus de capitais como Porto Alegre e Salvador passariam a divulgar frases inteligentes como "Religião não define caráter" ou apressadinhas como a que lembra que um cara como Hitler acreditava em Deus. Segundo os organizadores, Deus estaria também seriamente envolvido na tragédia do 11 de Setembro. A campanha, um sucesso em Londres no ano passado, entre nós foi momentaneamente suspensa e está sendo objeto de boas e saudáveis discussões jurídicas e teológicas.
De qualquer forma, graças a Deus, e não certamente às Igrejas, esses nossos ateus nacionais não serão, como em outras eras, queimados vivos em praça pública, nem mesmo excomungados. Fosse nos séculos 11, 12…
Mas a verdade é que os crimes em nome de Deus, cujos reflexos agora ameaçam incendiar (filosoficamente!) ônibus em pleno século 21, não começaram ali, na Idade Média. É possível que tenham começado em outubro de 312, quando um general romano brilhante e supersticioso, Constantino, julgou ver uma cruz no céu anunciando sua vitória contra o rival Maxêncio.
Constantino ganhou a parada, virou imperador e o evangelho de Jesus sofria aí a sua maior derrota moral em todos os tempos. Porque no ano seguinte, 313, o Édito de Milão liberava a prática de cultos não oficiais e o século 4º terminaria com o cristianismo sendo proclamado a religião oficial do Império Romano. Padres passam a receber salários do Estado e bispos ganham o status de príncipes.
Essa sagração oficial constituiu, para a mensagem de Jesus, um golpe bem mais letal do que os males que nos últimos tempos tanto têm preocupado os papas, como a minissaia, o sexo livre e a camisinha. Na banda oriental do Império Romano, capital Constantinopla, a religião cristã se torna, a partir do século 4º, um mero departamento da corte, com imperadores nomeando ou desterrando bispos à vontade. Na decadente banda ocidental, capital Roma, a Igreja enfrenta e converte os bárbaros, uns certos francos, alemães e ingleses, e vai aos poucos montando seu próprio império, o Sacro Império Romano Cristão. Firma-se então um totalitarismo político-religioso que vai durar quase mil anos.
Não é difícil entender quanto esse Deus compulsório das crenças baseadas em revelações proféticas tem tudo para se tornar uma das mais ressentidas e amargas fontes de ateísmo. Diferentemente das religiões sapienciais, como o confucionismo, que se preocupa mais com a ética e as místicas, e o budismo, que se ocupa da iluminação de cada um, as proféticas, como o islamismo e o cristianismo, caem na tentação de instituir e, claro, politicamente comandar um puro e único reino de Deus na terra. O que, como em todas as ditaduras, sempre começa com a melhores intenções e com o tempo só se mantém com a ajuda da polícia. No caso religioso, essa salvação na marra tem consequências particularmente abomináveis. Nem é preciso ser um grande historiador para ver quanto, na história da humanidade, a pureza e a fé mataram mais do que o pecado e a dúvida.
No Ocidente, esse adultério entre poder e fé se prolongou por séculos e resultou numa sociedade totalitária, onde nada – cultura, ciências, sonhos, hábitos – podia ficar de fora do controle minuciosamente invasivo da Igreja. Que o digam as bruxas e judeus martirizados, e Giordano Bruno tendo a boca rasgada numa praça de Roma, e Galileu Galilei precisando de muita inspiração do Espírito Santo para driblar seus inquisidores. Só a muito custo e muito na marra a Igreja foi se desfazendo dos seus sonhos absolutistas.
Depois de tantos séculos de asfixia social, científica e espiritual, não é de estranhar que esse temor a Deus, tão tristemente cultivado, se transforme em bronca de Deus, chegue às ruas e tome o ônibus. Será uma pena se essa bronca não for em frente. Mais do que contra Deus, o que ela saudavelmente combate é a apropriação arrogante do seu santo nome, o descarado uso comercial ou político da fé. Ela tem tudo para incomodar, com razão, aqueles ateus covardes que criam um Deus à imagem e semelhança dos seus medos, preconceitos e amarguras, numa confortável distância do Deus Jesus, que pede o amor includente ("como o sol e a chuva que caem sobre bons e maus"), o amor eficiente (parábola do bom samaritano), o dever de perdoar para obter misericórdia, a confiança inabalável mesmo na escuridão ("em tuas mãos entrego meu espírito"). Hoje basta ligar a televisão para ser abalroado por gente que sabe exatamente o que o Senhor do Universo quer e não hesita em cobrar caro por isso, moral e financeiramente.
Mas claro que nem só de ateus bronqueados vive a Atea. Há nesse movimento o ateu simplesmente racional, científico, que considera Deus uma hipótese não só perigosa, mas infundada. Para esses, talvez não custe lembrar que essa questão é, felizmente, mais complexa, emocionante e intrigante. E poderia ser assim radicalizada: fora da opção religiosa pela verdade revelada na fé, ainda não há sobre a face da Terra nenhuma prova final, definitiva, verificável, da existência de Deus. Fora da opção racional pelo ateísmo, ainda não há sobre a face da Terra nenhuma prova final, definitiva, verificável da não existência de Deus.
Seria, pois, mais justo, e até mais divertido, que crentes e ateus se dessem as mãos na esperança de um dia, de alguma forma, emboscar Deus nas teias das nossas mais recentes viagens pelo fundo do universo(Hubble), pelo fundo do inconsciente coletivo humano (Jung) ou pelo próprio coração da matéria (LHC, o acelerador de partículas).
Por enquanto, Deus pode ser uma ilusão, não necessariamente um erro. A distinção é clássica. Dizer que a Terra é o centro do universo é um erro. Sonhar com um príncipe encantado pode ser uma ilusão, mas pode acontecer.
Por enquanto, não é justo negar por negar um Deus vivamente perceptível pela experiência mística, o ritual emocionado ou a confiança amorosa. Bilhões de pessoas em todas a eras e culturas tem haurido nesse Deus cotidiano um norte para suas vidas, valores éticos, alegria de viver, conforto na dor e uma esperança de vitória sobre essa precariedade final, a morte.
Nem todos gozam dessa fé pura e simples. Para muitos, e cada vez mais, sobra uma fé batalhada e inquieta. Madre Teresa de Calcutá, por exemplo, escreveu cartas ao confessor em que revelava seus longos períodos sem Deus, a ponto de declarar que, caso se tornasse santa, seria a "santa da escuridão". O escritor francês Georges Bernanos, católico indomável, ao morrer, ousou dizer a Deus: "Agora é entre nós dois".
Da sua parte, os militantes da Atea devem reconhecer que, nesses séculos todos, Deus não esteve ocupado apenas em iluminar Hitler ou providenciar virgens para o céu de terroristas. Ele também fortaleceu homens do tamanho de um Luther King nos Estados Unidos, de um Desmond Tutu na África do Sul, de um Oscar Romero em El Salvador.
Termino com três aproximações, provocações, ou quem sabe, parábolas. Numa empresa qualquer, dois rapazes e uma moça trabalham juntos há anos. Acontece que um deles se apaixona pela menina. Ambos tem o mesmo, diário e continuado conhecimento da colega, mas só um percebe nela uma outra realidade. Ateus devem levar em conta que o conhecimento racional não é tudo.
Nos Estados Unidos, um respeitado filósofo da mente, Daniel Dennet, autor de A Perigosa Ideia de Darwin, todos os anos organiza e dirige corais de Natal com os vizinhos, mesmo sendo um ateu convicto.
À certa altura do seu conto O Fim, Jorge Luis Borges interrompe a narrativa de uma vulgar briga de faca para dizer o seguinte: "Há uma hora da tarde em que o pampa quer nos dizer alguma coisa e não diz, ou talvez diga infinitamente e não entendemos, ou entendemos, mas é intraduzível como a música". Ele poderia estar falando de Deus.
Longe de pensar que ateus não passam de cínicos sem valores. Crentes teriam muito a aprender à luz desses ônibus incendiados de mensagens desassombradas. E a única coisa que talvez se possa pedir aos ateus é que não deixem de ouvir música. Outras músicas.
Carlos Moraes é gaúcho e se ordenou padre em 1966. Foi condenado à prisão em 1972 com base na Lei de Segurança Nacional. Depois trabalhou como jornalista nas revistas Realidade, Psicologia Atual e Ícaro.
Fonte: de Carlos Moraes para o Estadão